quinta-feira, 3 de julho de 2014

EDUCAÇÃO - Autoridade como responsabilidade pelo mundo

O papel da autoridade nas relações educativas tem mobilizado paixões e suscitado polêmicas intermináveis entre pais, professores, teóricos da educação e gestores de políticas públicas. Há aqueles que, alarmados com o seu suposto declínio, clamam pela restauração da autoridade docente como fundamento das relações pedagógicas. Contudo, há também aqueles que, inconformados com o que acreditam ser sua anacrônica persistência, reivindicam a renovação das práticas escolares como forma de banir a autoridade das relações pedagógicas.
Para alguns, a progressiva perda de legitimidade da cultura escolar e a ascensão do poder de influência da mídia sobre as novas gerações manifestam de forma inequívoca o ocaso da autoridade docente nas relações educativas. Para outros, as instituições escolares não cessam de aumentar sua autoridade e seu poder normativo sobre jovens e crianças que as frequentam, ainda que para isso recorram a técnicas cada vez mais sutis de controle e governo das condutas. Em suma, quando o tema é a autoridade nas relações educativas, as disputas teóricas e práticas parecem sempre apontar para opostos irreconciliáveis.
Todavia, se não há consenso entre aqueles que vislumbram seu declínio e aqueles que denunciam sua intensificação; entre os que desejam sua restauração e os que proclamam a necessidade de sua abolição, parece haver ao menos um ponto em comum entre essas posições em conflito: a tendência a confundir — em seu sentido estrito de fundir em um todo indiscernível — as noções de “autoridade”, “coerção”, “poder” e “legalidade”. Visto que todas essas formas de relação com o outro tencionam obter como resultado a “obediência”, elas têm sido tratadas como se fossem análogas ou equivalentes.
Essa confusão conceitual tende a obscurecer a natureza específica da autoridade como modo peculiar de mediação das relações. E não se trata — é preciso ressaltar — de um preciosismo linguístico, mas da busca de elementos teóricos e conceituais que possam elucidar a variedade de experiências sociais a que estamos sujeitos em nossa existência política, ou seja, em nosso “viver juntos” nesse mundo comum e público. 
Imaginemos, então, três situações cotidianas cujo desfecho é o mesmo: a obediência. Analisemos se seria o caso de concebê-las como exemplos de um mesmo fenômeno ou se, ao contrário, cada uma delas constitui uma modalidade específica de relação com o outro e com o mundo.

  1. Alguém lhe aponta uma arma, ordena que você entregue seu relógio e, diante dessa ameaça, você obedece.
  2. Uma nova lei, que você considera inoportuna e sem sentido, é aprovada no Congresso. Apesar de sua objeção pessoal, você obedece por mero respeito ao ordenamento jurídico.
  3. Em face de um dilema existencial, você consulta um tio em quem confia e decide levar em conta suas ponderações e obedecer aos seus conselhos. 

Ora, ainda que nas três situações o resultado final seja o mesmo do ponto de vista funcional — a obediência —, é indubitável que cada uma dessas três situações representa uma experiência existencial completamente distinta e faz pouco ou nenhum sentido classificá-las como fenômenos idênticos ou semelhantes entre si. No primeiro caso, por exemplo, a obediência é obtida como o produto de uma imposição pela força. Ela é marcada por uma relação fundada na ameaça e na coerção, não no reconhecimento pessoal da legalidade da demanda, nem na autoridade de quem a fez.
Também no campo das práticas escolares, o recurso a ameaças e coerções no plano das relações pedagógicas pode, eventualmente, gerar mecanismos de produção de obediência, porém jamais uma relação fundada na autoridade. Um claro exemplo dessa confusão é o que prescreve o Projeto de Lei nº 267/201, uma proposta de Emenda Constitucional, apresentada pela Deputada Cida Borghetti (PP-PR) em fevereiro de 2011, que pretende, segundo sua autora, resgatar “a autoridade intelectual e moral” do professor, ameaçando os alunos com medidas judiciais. Ao prever sanções jurídicas para ações de desrespeito ao docente, confunde-se a observância da lei com a legitimidade de uma relação assimétrica livremente consentida. Trata-se, é evidente, de um equívoco conceitual e de um despautério pedagógico.
O vínculo social fundado em uma relação de autoridade não se confunde com a obediência derivada do uso da força ou de sua ameaça. Ao contrário, uma relação fundada na autoridade, como nos lembra Hannah Arendt, “exclui de imediato o uso de meios externos de coerção, [pois] quando se recorre à força é porque a autoridade, em si, falhou” (2006, p. 92). Portanto, ao contrário do que reza a expressão, não se pode “impor a autoridade” a alguém! Na verdade, a autoridade não se impõe. Ela se interpõe como uma relação fundada na confiança, de forma que aquele que obedece o faz livremente.
Esse tipo de vínculo manifesta-se, por exemplo, quando seguimos os conselhos de um médico ou ouvimos as ponderações de um mestre. E assim o fazemos não em função de ameaças ou de qualquer sorte de coerção física ou moral, mas porque reconhecemos nessas pessoas algum tipo de saber, conhecimento ou discernimento que inspira confiança. Logo, o que faz vicejar uma relação de autoridade não é o medo, mas o respeito e a segurança inspirados pela confiança. 
Conferir a alguém um lugar de autoridade implica afirmar que acreditamos que essa pessoa seja capaz de um diagnóstico correto, de um ajuizamento justo, de um conselho apropriado. A autoridade se estabelece a partir de uma relação fundada na credibilidade e na crença: “Sem essa dupla referência à credibilidade do lado de quem comanda e à crença do lado de quem obedece, seríamos incapazes de distinguir autoridade da violência ou mesmo da persuasão” (Ricouer, 2001, p. 109).
O objeto dessa credibilidade é sempre alguém — no caráter singular de sua personalidade — a quem confiamos a capacidade de nos guiar naquilo cuja compreensão nos escapa, de nos orientar naquilo que (ainda?) não dominamos, de nos aconselhar em face de dilemas para os quais não vislumbramos saída. No entanto, e essa é mais uma peculiaridade da noção de autoridade, esse alguém a quem se confere autoridade sempre age em nome de algo que o transcende: a fundação de uma comunidade política ou religiosa, a herança de um saber, a crença em um desígnio futuro, a força de uma instituição. Em síntese, age em nome de crenças, princípios e práticas que se inscrevem num tempo e num espaço comuns a uma coletividade.
Por essa razão, espera-se daquele a quem se credita autoridade o respeito exemplar às regras e aos princípios em nomes dos quais age e fala. Nesse sentido, legalidade e autoridade não coincidem. Podemos, por exemplo, reconhecer o caráter legal da eleição de um presidente do Senado (desde que tenham sido observados os trâmites regimentais), mas, ainda assim, recusar-lhe um lugar de autoridade. Um senador da República que utilize as prerrogativas de seu cargo para angariar benefícios privados não fala em nome dos princípios da instituição a que pertence. Ele pode legalmente ocupar o cargo, mas isso não lhe confere automaticamente o reconhecimento do caráter legítimo de sua autoridade.
O mesmo se passa ao pensar o lugar de um professor na instituição escolar. O que pode conferir-lhe autoridade não é a legalidade de sua contratação ou a posse de um diploma, mas o fato de os alunos reconhecerem nele seus vínculos com os valores da instituição em que trabalha e os princípios da matéria que ensina. Um professor também fala em nome de algo maior do que ele mesmo: a matemática, a filosofia, a cultura letrada, a escola como instituição social.  
A autoridade é, pois, simultaneamente representativa e pessoal; fundamenta-se em algum tipo de transcendência temporal, mas sempre necessita da presença imanente daquele que a encarna. Ela fala em nome de uma comunidade, mas sempre pela voz singular de um indivíduo. Daí seu caráter fundamental no processo de formação educacional. O mundo a que chegam os novos — as crianças e os jovens a quem se educa — não é imediatamente inteligível. Ele é opaco, estruturado a partir de práticas e valores que não são enunciados (e, muitas vezes, sequer enunciáveis!), dotado de linguagens cujas gramáticas nem sempre estão codificadas ou acessíveis.
Em meio a um complexo mundo de heranças simbólicas já estabelecidas, aqueles que são novos precisam ser acolhidos por alguém em que depositem confiança, a quem creditem a tarefa de guiá-los por entre demandas às quais ainda não se sentem capazes de responder por si sós, por entre problemas cuja solução exige discernimento em vez da aplicação mecânica de regras. Creditar autoridade a alguém significa, portanto, reconhecê-lo como capaz de esclarecer o obscuro, fazer escolhas e apontar rumos quando — ou enquanto — não somos capazes de fazê-lo exclusivamente a partir de nossa própria capacidade de julgar.
Reconhecer alguém como autoridade implica tê-lo como exemplo ou referência por acreditar que saiba mais, possa mais ou tenha mais experiência no trato com esse mundo, com suas linguagens e práticas. Não se trata de uma submissão cega a outrem, mas de uma filiação que não nos obriga, embora nos submeta a uma influência em princípio desigual. Uma submissão que, paradoxalmente, finca as bases a partir das quais alguém poderá vir a se constituir em um sujeito autônomo.
Quem quer que pense, julgue e analise por si mesmo não o faz a partir do nada ou de um vazio de experiências. Ao contrário, sempre o faz a partir de referências, parâmetros ou modelos de excelência; enfim, de autoridades internalizadas que operam como um recurso reflexivo ideal a orientar escolhas, julgamentos e decisões.
Nesse sentido, a autoridade nas relações educativas tem uma peculiaridade que deve ser sempre observada: a razão de ser de seu exercício no presente é sua abolição em um futuro próximo. A autoridade legítima de um professor fundamenta-se no fato de que ele trabalha para, ao final do processo, tornar-se desnecessário. A ignorância desse preceito básico talvez seja o mais pernicioso efeito dos discursos das chamadas pedagogias não diretivas em seus esforços de negar qualquer papel relevante à autoridade docente.
Ao rejeitar a autoridade do educador como traço constitutivo da experiência intergeracional que preside o processo educativo, as pedagogias não diretivas não a eliminam do contexto social, mas apenas favorecem sua emergência e consolidação em novos espaços e personagens sociais, como os ídolos midiáticos ou os profetas da autoajuda. É uma renúncia de graves consequências políticas, já que incide sobre a representação que uma instituição pública — de presença capilar nas sociedades modernas — tem acerca de si mesma, da legitimidade de sua tarefa cotidiana e de seus compromissos políticos e sociais.
Vivemos, é verdade, uma crise de autoridade provavelmente sem precedentes, uma crise que não surgiu na escola, nem deriva imediatamente de suas práticas. Ela brota, em vez disso, do tipo de relação que temos estabelecido com o mundo comum e público — esse espaço compartilhado que acolhe e abriga cada novo ser humano que vem à vida, de uma atitude política cuja marca tem sido a recusa e a desresponsabilização em face do legado material e simbólico que constitui esse mundo comum.
Essa é uma crise que invadiu a escola e contaminou as relações que nela se estabelecem. Daí a importância de se rejeitarem os caminhos fáceis, tanto da restauração de uma suposta autoridade idealizada do passado quanto de sua recusa sumária. Não se pode escolher educar com ou sem autoridade. A autoridade é consubstancial à educação, ao menos se por educação compreendermos a formação de seres humanos comprometidos com o mundo, e não a mera difusão de competências supostamente exigidas pelo mercado. 
  • José Sérgio Carvalho é livre-docente em Filosofia da Educação e professor da Faculdade de Educação da USP.jsfcusp@usp.br
Fonte: Revista Pátio